Em um dos últimos momentos do tempo normal, a parte do Maracanã pintada em três cores, na verdade também a outra parte, de azul y oro, segurou a respiração até quase engolir a própria língua: Diogo Barbosa havia se infiltrado em sub-reptícia artimanha pelo lado esquerdo da área e estava a poucos metros de alcançar o surpreendente heroísmo pessoal ao mesmo tempo em que anunciava a libertação de um povo. Ele errou. Era preciso que ele errasse.

O equívoco do lateral vai entrar para a história como nota de rodapé, mas ao mesmo tempo foi responsável por acrescentar aqueles que provavelmente vão se tornar os capítulos mais célebres da jornada em que o Fluminense, esbaforido já no fim da escalada e com mão agarrada num punhado de raízes, conseguiu hastear a bandeira tricolor no topo da Cordilheira dos Andes. Ou a bandeira da América no bairro das Laranjeiras. Ou a camisa em homenagem a Cartola no varal fronteiriço do continente.

Muito ainda precisava acontecer — grandes eventos históricos têm demandas adjacentes, que o diga a família real da Rússia. Pois já havia acontecido Germán Cano, artilheiro voraz e ídolo tardio, mas era preciso que houvesse também John Kennedy, guri enfezado e herói precoce, para selar com o peito do pé aquele chute que povoa os mais íntimos e impublicáveis anseios de jogadores e torcedores. Aquela pelota pingando na frente da área no mais determinante dos momentos, quando as marés recuam e as pupilas dilatam, que nos faz acordar em um espasmo no meio da noite, assustados e impedidos de correr para a massa na arena onírica. Era preciso ver, na vida real, John Kennedy abraçado na multidão para alimentar outros sonhos que se multiplicavam.

O dinizismo todos já havíamos visto, mas era preciso ver mais uma vez, una vez más, este outro Fluminense de Fernando Diniz, que colocou acima de todas as convicções a necessidade urgente de deixar aquela gente, que tanta crença lhe empenhou, soltar o desafogo do século. E para isso se entrincheirou, Cristo e Maradona são testemunhas, Super Ézio foi escrivão, pois também há beleza em segurar o sonho com unhas e dentes — na verdade, esta é A Grande Beleza. Como houve beleza, e já a história rascunhada, em negar-se a morrer no Beira-Rio, pendurando-se num fio de cabelo de esperança e duas tranças de caráter, pois a montanha recém estava na metade.

Em eventos como esse de 4 de novembro não resta conceito. Não resta sequer jogo. Depois, tudo que aconteceu em campo é miragem. O que há são os pedaços de sonho que ficaram pela madrugada, quando o despertador fez as vezes de Ceballos, e todo o despertar que a partir de agora nunca será o mesmo. O que há, fundamentalmente, é a guriazinha chorando todas as emoções que uma arquibancada proporciona, com todo o imenso poder catalizador dos seus sete anos, assim como muitos em 2008 tinham os mesmos sete anos. E, como todos os tricolores, com toda uma vida pela frente. A partir de agora, uma outra vida. A vida que todos merecemos.

Fonte GE